sexta-feira, 31 de agosto de 2007

A Inconstância Humana

Luiz Fernando Verissimo

Ela tem um nariz arrebitado, mas isso não é nada. Nariz arrebitado a gente resiste. Mas a ponta do nariz se mexe quando ela fala, delegado. Isso quem resiste? Eu não. Nunca pude resistir a mulher que quando fala a ponta do nariz sobe e desce. Muita gente nem nota. É preciso prestar atenção, é preciso ser um obsessivo como eu. O nariz mexe milímetros. Para quem não está vidrado, não há movimento algum. Às vezes só se nota de determinada posição, quando a mulher está de perfil. Você vê a pontinha do nariz se mexendo, meu Deus. Subindo e descendo. No caso dela também se via de frente. Uma vez ela reclamou, “Você sempre olha para a minha boca quando eu falo”. Não era a boca, era a ponta do nariz. Eu ficava vidrado no nariz. Nunca disse pra ela que era o nariz. Delegado, eu sou louco? Ela ia dizer que era mentira, que seu nariz não mexia. Era até capaz de arranjar um jeito de o nariz não mexer mais.

Mas a culpa, delegado, não é do nariz, não é dela e não é minha. A culpa é da inconstância humana. Ninguém é uma coisa só, nós todos somos muitos. E o pior é que de um lado da gente não se deduz o outro, não é mesmo? Você, o senhor, acreditaria que um homem sensível como eu, um homem que chora quando o Brasil ganha bronze, delegado, bronze? Que se emocionava com a penugem nas coxas dela? Que agora mesmo não pode pensar na ponta do nariz dela se mexendo que fica arrepiado? Que eu seria capaz de atirar um dicionário na cabeça dela? E um Aurelião completo, capa dura, não a edição condensada? Mas atirei. Porque ela também se revelou. Ela era ela e era outras.

A multiplicidade humana, é isso. A tragédia é essa. Dois nunca são só dois, são 17 de cada lado. E quando você pensa que conhece todos, aparece o 18º. Como eu podia adivinhar, vendo a ponta do narizinho dela subindo e descendo, que um dia ela me faria atirar o Aurelião completo na cabeça dela? Capa dura e tudo? Eu, um homem sensível?

Deveria ter desconfiado de alguma coisa quando descobri que o celular dela tocava Wagner. Quem escolhe Wagner para o seu telefone celular? Pode-se saber muita coisa sobre uma pessoa pelo que ela escolhe para tocar quando soa o seu celular. Eu achei engraçado o Wagner, ela um doce de mulher escolhendo o Wagner, mas na hora não dei maior importância. Hoje sei que Wagner era um sinal. Um dos outros, das outras, que ela tinha por dentro, escolheu o Wagner.

Foi uma maneira de dizer que o nariz arrebitado não era tudo, que eu não me enganasse com o seu jeitinho de falar, com o apelido que ela me deu, “Guinguinha”, veja o senhor, “Guinguinha”, que só depois eu descobri era o nome de um cachorro que ela teve quando era pequena e morreu atropelado, “Guinguinha”, delegado. Foi uma maneira de dizer que uma das que ela tinha por dentro era uma Valquíria indomável de dois metros, e que se considerava de uma raça superior. Como, delegado? Fagner, não. Wagner. Aquele alemão. Tudo bem, eu também tenho outros por dentro. Por exemplo: nós já estávamos juntos um tempão quando ela descobriu que eu sabia imitar o Silvio Santos. Sou um bom imitador, o meu Romário também é bom, faço um Lima Duarte passável, mas ninguém sabe, é um lado meu que ninguém conhece. Ela ficou boba, disse “Eu não sabia que você era artista”. Ela também não sabia que eu tenho pânico de berinjela. Não é só não gostar, é pânico mesmo, na primeira vez que ela serviu berinjela eu saí correndo da mesa, ela atrás gritando “Guinguinha, o que foi?”.

Também sou um obsessivo. Reconheço. E a obsessão foi a causa da nossa briga final. Tenho outros por dentro que nem eu entendo, minha teoria é que a gente nasce com várias possibilidades e quando uma predomina as outras ficam lá dentro, como alternativas descartadas, definhando em segredo, ressentidas. E, vez que outra, querendo aparecer. Tudo bem, viver juntos é ir descobrindo o que cada um tem por dentro, os 17 outros de cada um, e aprendendo a viver com eles. A gente se adapta. Um dos meus 17 pode não combinar com um dos 17 dela, então a gente cuida para eles nunca se encontrarem. A felicidade é sempre uma acomodação. Eu estava disposto a conviver com ela e suas 17 outras, a desculpar tudo, delegado, porque a ponta do seu nariz mexe quando ela fala. Mas aí surgiu a 18ª ela.

Nós estávamos discutindo as minhas obsessões. Ela estava se queixando das minhas obsessões. Não sei como, a discussão derivou para a semântica, eu disse que “obsedante” e “obcecante” eram a mesma coisa, ela disse que não, eu disse que as duas palavras eram quase iguais e ela disse “Rará”, depois disse que “obcecante” era com “c” depois do “b”, eu disse que não, que também era com “s”, fomos consultar o dicionário e ela estava certa, e aí ela deu outra risada ainda mais debochada e eu não me agüentei e o Aurelião voou. Sim, atirei o Aurelião de capa dura na cabeça dela. A gente agüenta tudo, não é delegado, menos elas quererem saber mais do que a gente. Arrogância intelectual, não.

O Estado de S. Paulo, 12/08/2007

Veja artigo inspirador de Francisco Varella, publicado no site do Prof. Mariotti. Clique aqui.



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